quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

COTIDIANO ESCOLAR E CULTURA(S): DIALOGANDO COM OS RESULTADOS DE UMA PESQUISA


KOFF, Adélia Maria Nehme Simão e – UNESA – PUC-Rio

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo é um pequeno recorte (entre outros possíveis dada a riqueza dos dados obtidos) de uma ampla pesquisa, cujo objeto central é o estudo das relações entre educação e cultura(s) em diferentes espaços educativos – tema que vem adquirindo cada vez mais importância no mundo atual, tendo em vista aspectos tais como violência, preconceito e discriminação nas relações educativas, fracasso escolar e que, todos os dias, desafiam os/as educadores e responsáveis pelos sistemas de ensino.
Nosso objetivo é contribuir para o debate e oferecer elementos para que as práticas pedagógicas possam ser repensadas e/ou reinventadas, incorporando, de maneira crítica, a questão das diferenças culturais, na pluralidade de suas manifestações e dimensões.
Em outras palavras, a finalidade desse nosso trabalho é oferecer subsídios para a construção de uma didática escolar, comprometida com a promoção do diálogo entre a cultura escolar, a cultura da escola e as diferentes culturas sociais de referência.
Nesse sentido, nosso texto apresenta algumas reflexões, acerca do trabalho realizado nas salas de aula e em atividades extraclasse, no âmbito do ensino médio, em uma escola particular, na tentativa de apreender seus significados e compreender o modo como se dá ou não a relação entre a cultura escolar, a cultura da escola e a cultura social de referência, no caso, as culturas dos/as jovens.



OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: BREVES ANOTAÇÕES

Sabemos que o mundo contemporâneo – cada vez mais complexo nas suas diferentes dimensões – vem passando por mudanças significativas e tão radicais que, muitas vezes, não somos capazes de compreendê-las de modo adequado. Sabemos também que grandes divisões e inúmeros conflitos marcam as sociedades atuais, muitos deles provocados por questões de ordem cultural. Por isso e diante desse contexto, acreditamos que é necessário avançar a reflexão em torno das relações entre educação e cultura(s).
Vale dizer que estamos adotando um conceito abrangente de cultura, ou seja, uma dimensão que marca de modo significativo e confere identidade aos grupos sociais, expressando-se em seus modos de vida, de agir, de sentir, de interpretar o mundo, de se relacionar, etc ... Por outro lado, não estamos tomando a questão cultural de modo isolado, mas sim no contexto de suas interrelações com outras dimensões: a ideológica, política, social, econômica, sem deixar de reconhecer, contudo, que a valorização das contribuições das diversas identidades culturais é significativa e necessária para a construção de sociedades mais justas e solidárias. Trata-se “de dar ao componente cultural a atenção devida e superar toda a perspectiva de reduzi-lo a um mero sub-produto ou reflexo da estrutura vigente na nossa sociedade”. (CANDAU, 2000, p. 62)
Para Forquin (1993),

“Incontestavelmente, existe, entre educação e cultura, uma relação íntima e orgânica. Quer se tome a palavra “educação” no sentido amplo, de formação e socialização do indivíduo, quer se restrinja unicamente ao domínio escolar, é necessário reconhecer que, se toda a educação é sempre educação de alguém, por alguém, ela supõe também, necessariamente a comunicação, a transmissão, a aquisição de alguma coisa: conhecimentos, competências, crenças, hábitos, valores, que constituem o que se chama precisamente de “conteúdo” da educação. Devido ao fato de que este conteúdo parece irredutível ao que há de particular e contingente na experiência subjetiva ou intersubjetiva imediata, constituindo, antes, a moldura, o suporte e a forma de toda experiência individual possível, devido, então, a que este conteúdo que se transmite na educação é sempre alguma coisa que nos procede, nos ultrapassa, nos institui enquanto sujeitos humanos, pode-se perfeitamente dar-lhe o nome de cultura”. (p.10)

Fica, assim, evidente a necessidade de reconhecermos a dimensão cultural como um dos estruturantes da educação escolar e, portanto, a importância de compreender, cada vez mais, como esta relação acontece no cotidiano escolar, ou seja, como se expressam as diferentes dimensões desta problemática no dia-a-dia das escolas.
Em outras palavras, fica evidente a necessidade de analisarmos, em profundidade, como acontecem as aproximações, os diálogos e as trocas, mas também os distanciamentos, e as rupturas entre a cultura escolar, a cultura da escola e a(s) cultura(s) de referência, que configuram a população escolar.
Cabe aqui destacar que consideramos que o universo das culturas de referência é complexo, heterogêneo, plural, diversificado, onde circulam diferentes manifestações, por exemplo, das culturas eruditas e populares, da arte e da ciência, do artesanato e da tecnologia, abrangendo, inclusive, diferentes formas de comunicação de massa. Como Canclini (1997), entendemos que essas diferentes manifestações não se contrapõem, ao contrário, o que existe são processos – múltiplos e variados –  de hibridização cultural que implica distintas misturas interculturais e exigem um grande esforço crítico e criativo de compreensão. E é nesse contexto de hibridização cultural que acreditamos se “fertiliza” a ação educativa.
Quanto ao conceito de cultura escolar, entendemos que se trata de um conceito polissêmico, que admite diferentes sentidos e enfoques. Embora reconhecendo que Gimeno Sacristán (1996) e Pérez Gómez (1993) oferecem elementos importantes para a construção de tal conceito, no âmbito deste trabalho e conforme descrição já realizada no item Algumas considerações iniciais, adotamos as contribuições de Forquin (1993), que chama a atenção, inclusive, para o fato de que a cultura escolar se refere aos conhecimentos intencionalmente trabalhados na escola, de modo especial, na sala de aula e supõe uma seleção entre os materiais disponíveis em um determinado momento histórico e social. É ele quem afirma:

“Educar, ensinar, é colocar alguém em presença de certos elementos da cultura a fim de que ele deles se nutra, que ele os incorpore à sua substância, que ele construa a sua identidade intelectual e pessoal em função deles. Ora, um tal projeto repousa necessariamente, num momento ou noutro, sobre uma concepção seletiva e normativa da cultura”. (p.168)

Avançando as suas reflexões sobre a relação entre escola e cultura, Forquin (1993) trabalha o conceito de cultura da escola e, desse modo, amplia a sua percepção das dinâmicas vividas na escola e dá subsídios para uma visão mais complexa e abrangente do cotidiano escolar.
Várias pesquisas realizadas em nosso país nos últimos anos têm revelado que predomina em nossas escolas uma cultura escolar rígida – padronizada, ritualística, pouco dinâmica, que dá ênfase a simples processos de transmissão de conhecimentos e está referida à cultura de determinados atores sociais (Candau, 2000a) - e que pouco dialoga com o contexto cultural das crianças e dos/as jovens que delas fazem parte, dificultando, por exemplo, a incorporação de novas linguagens, expressões culturais, novas sensibilidades tão caras às novas gerações.
Além disso, Candau, (2000a) afirma que

“Chama a atenção quando se convive com o cotidiano de diferentes escolas como são homogêneos os rituais, os símbolos, a organização do espaço e do tempo, as comemorações de datas cívicas, as festas, as experiências corporais, etc. Mudam as culturas sociais de referência, mas a cultura da escola parece gozar de uma capacidade de se autoconstruir independentemente e sem interagir com esses universos. É possível detectar um congelamento da cultura da escola que, na maioria dos casos, a torna estranha a seus habitantes”. (p. 68)

Finalmente e tendo em vista os limites deste artigo, cremos que vale uma última anotação para completar nossas breves considerações acerca de alguns pressupostos teóricos que orientam nossos estudos. Trata-se de “lançar um olhar” sobre a questão da cultura jovem e destacar que não trabalhamos com a idéia de juventude, enquanto uma categoria genérica e homogênea. Ao contrário, queremos superar essa visão e, então, adotamos uma abordagem que privilegia uma concepção plural de juventude, que evidencia seu caráter fragmentado, diversificado e considera que a experiência juvenil acontece em diferentes grupo sociais e culturais e, portanto, não pode ser reduzida a uma questão de geração. Concordamos que

“Os jovens passam, assim, a ser vinculados às suas experiências concretas de vida e adjetivados de acordo com o lugar que ocupam na sociedade. Não se fala mais em abstrato, como uma espécie de energia potencial de mudanças, ainda que culturalmente construída, mas das múltiplas identidades que recortam a juventude”. (Cardoso e Sampaio, 1995, p.18)

Assumimos, portanto, um conceito de juventude que incorpora a riqueza de sua pluralidade e entende os jovens de hoje na sua originalidade, como sujeitos capazes de serem atores e se manifestarem como sujeitos autônomos. (Candau, 2000)
Problematizar a própria concepção de escola, seu papel na sociedade atual, questionar o modo como a escola lida com o conhecimento, desenvolve suas práticas e vive as relações com os sujeitos que dela participam implica, acreditamos, compreender a natureza das relações entre a cultura escolar, a cultura da escola e a cultura social de referência, mais especificamente, as culturas jovens.


OS CAMINHOS DA PESQUISA

Nessa perspectiva optamos por realizar um estudo de caso de natureza qualitativa e de cunho etnográfico. Por isso, decidimos pesquisar uma experiência concreta desenvolvida, na primeira e segunda séries do ensino médio, por uma escola particular, cujos/as alunos/as são oriundos/as das camadas média e alta da sociedade.
Cabe aqui registrar que a seleção da escola levou em conta o fato dela se auto-identificar como uma instituição que se propõe a trabalhar na tensão, ou seja, articulando herança cultural e atualidade, formação para a cidadania e preparação para o vestibular.
Fizemos, então, um intenso e amplo mergulho no cotidiano da Escola Emília para constatar regularidades, fatos eventuais, comportamentos espontâneos, aceitos ou não pelo grupo, hábitos, linguagens e, ainda, captar suas rotinas, ritos, acontecimentos e práticas, fossem eles de caráter pedagógico propriamente dito (realizados na sala de aula, bibliotecas, laboratórios, quadras esportivas, salas de reunião e conselhos de classe, por exemplo) ou não (nos momentos de entrada e saída da escola, nos intervalos das aulas, durante o recreio, nos dias de festa ou comemorações, entre outros).
Foram realizadas cerca de 220 horas de observação, ao longo de um semestre, em diferentes espaços da escola, incluindo o trabalho em salas de aula de três professores (de filosofia, língua portuguesa e química) e de uma professora de história. Além disso, foram feitas quinze entrevistas individuais com profissionais de educação (integrantes da direção, coordenadores/as e professores/as) e vinte e cinco com alunos/as. Também optamos por realizar quatro encontros com os/as estudantes (uma espécie de entrevistas coletivas), onde eles/as puderam discutir temas relevantes para o nosso estudo. Tudo isso e mais a análise de documentos, como atas de reunião, planos de trabalho, grades curriculares, materiais didáticos utilizados, revistas editadas pela escola, cartas e outros documentos oficiais, nos permitiram entrar no cotidiano da escola de modo progressivo, intensivo e abrangente, buscando compreender como as relações eram tecidas e os sentidos, dia após dia, eram construídos e reconstruídos pelos diferentes sujeitos.
Vale registrar que, no momento da realização de nossa pesquisa, a escola, no ensino médio, contava com 31 alunos/as na primeira série, 29 na segunda e um total de 17 professores.
Em função da riqueza e diversidade dos dados coletados, no relatório final de nossa pesquisa é possível constatar que muitos são os elementos que configuram o cotidiano da Escola Emília e que podem ser considerados “sinais” para nos ajudar a compreender como acontece ou não a relação entre cultura escolar, cultura da escola e cultura de referência dos/as jovens.
Só para citar alguns exemplos: o modo como os seus espaços físicos (construídos e naturais) são apropriados e organizados e, até mesmo, os seus diversos murais (tanto aqueles criados pelos/as alunos/as, como os que servem para divulgação de informações) expressam o clima, dão identidade a escola e representam uma oportunidade de diálogo com os/as estudantes. A movimentação dos/as alunos/as ou a sua concentração em locais alternativos como a cantina, a ladeira e o ginásio esportivo refletem a dinâmica das relações entre os/as estudantes e entre eles/as e as demais pessoas que circulam na escola, marcada por cordialidade, descontração e encontros, mas também por muitos debates, trocas, confrontos e aprendizagens. O fato de que não são “apenas um número” mas, ao contrário, são identificados pelo nome e por sua longa trajetória na escola (a maioria está lá desde a fase da educação infantil) permite que eles/as se reconheçam como atores-protagonistas na escola. As brincadeiras, músicas e leituras com as quais os alunos/as se envolvem, as roupas e acessórios que utilizam, as conversas, as próprias produções e as múltiplas linguagens que adotam expressam, com muita singularidade, suas diferenças, seus interesses, compromissos, sonhos e ideais.
Além disso, a forma de atuação e fala dos/as professores/as fornecem elementos que nos permitem, de um lado, constatar uma prática pedagógica que acontece na tensão - preparar para o vestibular e/ou formar para a cidadania – e como se dá ou não a relação entre cultura escolar, cultura da escola e as culturas dos/as jovens, seus alunos e alunas.
Neste artigo, entretanto, vamos apresentar apenas a análise de como essa tensão e relação são “vividas” na prática pedagógica que acontece no interior das salas de aula e nas atividades extra-classe.


A SALA DE AULA E AS ATIVIDADES EXTRA-CLASSE: ENCONTROS E DESENCONTROS COM AS CULTURAS DOS/AS JOVENS

Antes mesmo de apresentar nossas constatações e considerações críticas acerca das dinâmicas que caracterizam as salas de aula e as atividades extra-classe, tendo como eixo de análise a dimensão cultural, de um modo geral, e a questão do diálogo com as culturas jovens, em particular, acreditamos que é necessário “trazer” alguns elementos que caracterizam a proposta pedagógica da Escola Emília, os quais entendemos como referenciais que fundamentam e norteiam o trabalho pedagógico nela realizado e expressam parte de suas formulações teóricas, consideradas em nossos estudos.
Analisando diversos documentos como, por exemplo, o Projeto Pedagógico do Ensino Médio, seus boletins informativos e alguns números da revista da escola (trata-se de uma revista anual edita com a finalidade de oferecer à comunidade escolar e à sociedade reflexões que acontecem no dia-a-dia da vida acadêmica e, especificamente, durante as reuniões semanais de professores, coordenadores e diretores), podemos constatar sua “preocupação com a formação de cidadãos e cidadãs que participem da sociedade em que vivem e que nela atuem com responsabilidade, com o desenvolvimento de um ser humano harmonioso, realizador, solidário que seja capaz de discutir valores éticos e com a construção da autonomia intelectual e moral dos/as seus/suas alunos/as, longe de preconceitos, sem egocentrismos, respeitando as diferenças”. (Revista nº. 5).
Nos diferentes materiais analisados, podemos perceber que algumas questões ocupam de modo especial os debates e, conseqüentemente, orientam a proposta da escola, por exemplo, a necessidade de promover a aquisição e a construção de conhecimentos significativos, bem como a circulação de saberes. A perspectiva de realização de um trabalho interdisciplinar e a necessidade de preparar para o vestibular, mas ir além dele e formar alunos/as que “saibam pensar, que tenham hábitos de estudo e de trabalho, que estabeleçam tanto relações convergentes quanto divergentes, que demonstrem independência acadêmica, que se constituam em sujeitos da construção do conhecimento, da ciência e da sociedade” ocupam também um lugar de destaque na proposta pedagógica da Escola Emília. E mais, o estímulo à discussão e à crítica, o respeito ao outro e a aceitação da diversidade, bem como a informação sobre a cultura e a formação de valores. (Projeto Pedagógico do Ensino Médio)
Diante desse quadro de princípios e levando em conta tanto as nossas observações, como as entrevistas realizadas, parece-nos mesmo que a tensão - preparar para a cidadania e/ou para o vestibular -, vivida cotidianamente pela Escola Emília, vai marcar de modo significativo os “acontecimentos” nas salas de aula, as atividades extra-classe e os limites e possibilidades de diálogo - nesses diferentes espaços ou momentos - com as culturas dos/as jovens.
São palavras de uma das diretoras ao expressar seu compromisso com a preparação dos/as alunos/as para o vestibular: “temos que nos render a realidade ...”. Outra diretora complementa: “ ... o que a Escola Emília deseja é que seus/suas alunos/as sejam participantes na sociedade e estejam preparados para enfrentar as suas mudanças.” Por sua vez, uma professora sublinha: “o desafio maior é preparar os alunos e alunas para o vestibular e, ao mesmo tempo, prepará-los dentro dos princípios piagetianos ...”
Pais e mães se manifestam: “Será que a escola vai se afastar de sua proposta pedagógica, de seus princípios e ensinar o aluno a ser malandro no vestibular?” Alunos/as expressam também essa tensão: “Qual o objetivo do Ensino Médio? 50% com o vestibular, 50% com o aprendizado. Os outros colégios não têm preocupação com o crescimento das cabecinhas. É bom sair do Ensino Médio e ter coisas para contar”.
Todavia, longe de ser uma tensão que dificulta ou prejudica a ação pedagógica da Escola Emília, parece-nos ser algo que a desafia, sugere reflexões, debates e propostas de práticas alternativas e variadas para viver e/ou lidar com ela no dia-a-dia escolar. No trabalho da sala de aula e nas atividades extra-classe – diferentes dimensões de um mesmo projeto – muitas possibilidades para perceber como essas buscas, construções, encontros e desencontros acontecem no cotidiano do Ensino Médio da Escola Emília.

A sala de aula: um espaço em questão
Os intensos estudos que realizamos na escola nos permitem registrar que a preparação para o vestibular vai “definir”, em grande parte, a prática pedagógica desenvolvida, nas salas de aula, pela maioria dos/as professores/as, das diferentes disciplinas. E, é claro, vai criar conflitos entre o “discurso”, as “intenções” e a natureza da própria prática, bem como dificuldades para a articulação entre a cultura escolar e as culturas dos/as jovens, já que a questão da “transmissão deliberada do conhecimento” (Forquin, 1993), principalmente dos programas dos vestibulares, ganha ênfase e ocupa espaço privilegiado.
Tanto as nossas observações como as entrevistas realizadas com os diferentes atores nos levam a acreditar que as salas de aulas da Escola Emília podem ser caracterizadas como clássicas, o que significa dizer, por exemplo, que elas têm uma organização espacial convencional (carteiras enfileiradas), a ação está centrada nos/as professores/as (eles/as “dão” aulas expositivas quase o tempo todo), as técnicas e dinâmicas utilizadas pouco variam (o trabalho em grupo é uma exceção), o diálogo com os/as alunos/as está centrado, na maioria das vezes, em perguntas e respostas relacionadas ao “tema da aula” planejado pelo/a professor/a, o quadro, livros didáticos e apostilas são os recursos mais usados, é tímida a utilização de tecnologias mais avançadas, há uma ênfase nos conteúdos curriculares e são muitos os momentos dedicados a testes, provas e exercícios para notas.
Entretanto, mesmo obedecendo a esse padrão, podemos dizer que a prática pedagógica nas salas de aula não é uniforme. Há diferentes estilos, maneiras de conduzir a aula, os/as professores/as têm suas particularidades. Existem aqueles/as que não se movimentam muito pela sala, ficam quase sempre ao lado de sua mesa ou diante do quadro-de-giz, mantêm o mesmo tom de voz ao logo das aulas, com freqüência expositivas, e adotam um certo distanciamento em relação aos/às estudantes. Nesse grupo, alguns/mas chegam a ser bem formais e, no caso deles, o tempo dedicado ao controle da disciplina chama a atenção. Outros/as, entretanto, procuram criar um clima de maior interação. Travam longas conversas sobre temas variados, circulam por entre as carteiras, buscando uma maior aproximação com seus/suas alunos/as sem, contudo, deixarem de se preocupar com o cumprimento do programa curricular.
Vale registrar, assim, que esse é o conteúdo priorizado no trabalho da sala de aula e raras são as vezes em que os professore/as fazem conexões e/ou relações entre eles e os acontecimentos do cotidiano e/ou entre eles e os interesses ou situações vividas pelos /as alunos/as. Isso, entretanto, não quer dizer que não constatamos o esforço de certos/as professores/as, no sentido de criar algumas oportunidades de diálogo entre os conteúdos programáticos e a realidade brasileira (violência, pobreza, reforma agrária, questões ambientais, etc.) ou, ainda, entre eles e os assuntos que fazem parte da cultura dos/as jovens que freqüentam a Escola Emília (esporte, cinema, música, fotografia, festas, escolha da profissão, relação com os pais, amizade, etc.)
Apesar da existência desses momentos (mesmo que poucos) de articulação com as culturas dos/as jovens, de uma maneira geral, o envolvimento dos/as alunos/as com a aula é bastante convencional: prestam atenção às exposições, fazem anotações em seus cadernos, copiam textos do quadro, formulam e respondem perguntas. A possibilidade de ir para a universidade é uma referência forte e, de certo modo, regula o comportamento dos alunos/as diante das cobranças que lhes são feitas, seja em relação à disciplina na sala de aula, seja em relação aos momentos de avaliação.
Podemos dizer, então, que “dar a aula e cobrar a aula” são os rituais mais comuns presentes nas salas de aula do ensino médio da Escola Emília, com espaços limitados para o uso de diferentes dinâmicas e linguagens, para o diálogo e, conseqüentemente, para a articulação com a cultura de seus/suas jovens alunos e alunas.
Todavia, não podemos deixar de mencionar o fato de que, apesar de um certo grau de ansiedade marcar as relações nas salas de aula – ansiedade provocada principalmente pelo fato da preparação para o vestibular estar ocupando um espaço privilegiado, quando muitos/as estudantes estão mais identificados com a idéia de uma proposta mais ampla que “prepara para a vida” (vale lembrar que a maioria deles/as está na escola desde o maternal, onde esta dimensão é muito valorizada) – constatamos, mesmo nessas salas de aula, um clima de bem-estar, de certa intimidade, inclusive na convivência com alguns/mas professores/as, de vários momentos de brincadeiras e bagunças, mesmo no contexto de muito trabalho sério e "broncas”, além de situações de intensa alegria, mesmo no meio de muitas reclamações e indignações protagonizadas por diversos/as alunos/as.
No que tange às salas de aula, cremos que há, ainda, um aspecto importante a ser considerado: seu caráter monocultural, vinculado principalmente a uma concepção de cultura “culta” e aos modelos próprios da cultura ocidental afeta e, até mesmo, dificulta as relações entre a cultura escolar, a cultura da escola e os demais universos culturais de referência, seja o próprio mundo cultural de seus/suas alunos/as, seja os outros mundos, as outras realidades que estão para além dos muros da escola e com as quais seus alunos/as dialogam ou não.
Vale dizer que, apesar da procedência bastante homogênea dos/as alunos/as da Escola Emília, muitos professores/as expressam suas dificuldades de entender e trabalhar a partir e com as culturas dos/as jovens. Vários apontam problemas para caracterizá-las, enquanto alguns chegam a dizer que elas são o quantitativo de cultura erudita, clássica ou artística que os/as alunos/as possuem, não se referindo aos seus modos de vida, interesses, pontos de vista, valores, crenças, linguagens, etc.

As atividades extra-classe: um espaço aberto ao diálogo
São nos espaços ou momentos destinados às atividades extra-classe onde os/as alunos/as expressam, com mais freqüência e intensidade, seus interesses, modos de pensar e “ver” a vida, mostram suas produções culturais, agem de modo mais espontâneo, usam suas linguagens e códigos específicos para se comunicar e estabelecer relações, discutem seus valores e crenças ...
São nos espaços naturais, cercados de árvores por todos os lados, na ladeira com seus muros pintados, bem coloridos onde podemos ver muitos desenhos, frases poéticas, slogans e diferentes símbolos criados pelos/as alunos/as, na biblioteca, nos laboratórios de ciências e de informática, no ginásio esportivo, na cantina da Escola Emília que os/as jovens mantém um diálogo muito próximo entre eles/as e com os demais integrantes da escola, usando uma linguagem toda própria. É ali, do lado de fora da sala de aula, onde os/as alunos/as vivem diferentes experiências, realizam várias atividades muitas vezes programadas com o apoio de alguns/mas professores/as (Semana da Cultura, Olimpíadas que podem ser de matemática ou esportivas, Gincanas, Festas, Feiras de Ciências, Encontros com O MST ou com o Teatro do Oprimido, Círculo de Debates sobre a violência ou a disseminação da AIDS, etc.) que o diálogo entre a cultura escolar, a cultura da escola e a cultura de referência dos/as jovens acontece de maneira mais efetiva. É ali que as expectativas, as necessidades e os interesses deles/as parecem encontrar mais respostas. É ali que muitas coisas que fazem parte da vida dos/as estudantes da Escola Emília, de sua cidade, do país em que vivem e até do mundo parecem não passar desapercebidas.
É importante registrar que as experiências extra-classe vão além dos muros da escola e podem acontecer em museus, no cinema, nas exposições de artes plásticas, no teatro, em creches, em passeios pelo centro da cidade ou pela praia e nas visitas às universidades. São as atividades extra-classe que parecem favorecer o diálogo com a atualidade e a articulação entre o contexto escolar e o mundo social, político e cultural de referência. São essas diversas atividades que acontecem fora da sala de aula que parecem dar corpo à outra face do projeto da escola – formar para a cidadania, preparando o cidadão e a cidadã para atuarem no mundo em que vivem e serem sujeitos de sua transformação.
Um aspecto, contudo, merece registro: tanto os/as alunos/as, como os/as professores/as consideram que essas atividades poderiam ser ampliadas, uma vez que elas não acontecem no ensino médio com a mesma freqüência que ocorrem, por exemplo, nas turmas de 5ª à 8ª séries. Nesse sentido, o depoimento de um professor é bastante expressivo: “como eu falei, o ensino médio está meio caretão e acaba não tendo muito espaço para isso. Tudo pulsa no ‘ginásio’ como uma coisa boa, no ensino médio ainda há receios de que estão perdendo aula, perdendo não sei o que, como se a aula fosse mais importante que um trabalho desse ...”
Por outro lado, alguns professores sublinham: “no ensino médio há um intenso e extenso programa a cumprir” e complementam dizendo que, “embora as atividades extra-classe estivessem, algumas vezes, relacionadas com o trabalho na sala de aula, elas fazem parte de uma proposta mais ampla da escola de preparar o indivíduo de um modo mais global, enfatizando aspectos da vida cultural”. Os eventos extra-classe permitem que os alunos tenham uma visão mais abrangente da realidade e podem proporcionar encontros com mundos diferentes, mais plurais.


BREVES COMENTÁRIOS FINAIS

De um lado, a prática pedagógica das salas de aula, de outro, a dinâmica das atividades extra-classe.
No primeiro caso, um forte vínculo com a preparação para o vestibular e um tênue diálogo com a cultura de referência dos/as alunos/as. Diante disso, cremos que vale uma  pergunta: é possível garantir o conhecimento escolar e, ao mesmo tempo, incorporar à prática pedagógica da sala de aula os saberes de referência? Nosso mergulho na Escola Emília sugere-nos uma resposta, pelo menos, provisória. Isso não parece ser uma tarefa fácil, já que o que constatamos foi mais distanciamento e/ou ruptura do que uma incorporação explícita. Na verdade, na sala de aula da Escola Emília a cultura escolar é privilegiada, bem como a norma e a rotina. Poucos foram os espaços para os temas mais relacionados ao contexto sócio-cultural ou aos interesses dos/as alunos/as.
Nossas pesquisas na Escola Emília nos permitem afirmar que ela tem como tradição ouvir e dialogar com os/as jovens, contudo, no ensino médio, essa tendência vem diminuindo em favor de um maior tempo dedicado à “aula”, tendo em vista o seu compromisso de prepará-los/as para a conquista de um lugar nas universidades. Parece-nos, portanto, que é por isso que grande parte do diálogo na sala de aula está centrado no chamado conteúdo curricular, sem que sejam feitas muitas conexões ou articulações com a atualidade ou com os interesses e/ou necessidades dos alunos/as. Sem dúvida, a sala de aula ocupa um espaço relevante no cotidiano da escola (e não poderia ser diferente), mas isso não significa que os/as alunos/as não queiram transformá-la em um espaço mais flexível, prazeroso, onde possam se manifestar mais, realizar trocas, serem ouvidos e terem suas opiniões mais valorizadas.
Um outro aspecto que nos parece oportuno registrar é o fato da sala de aula enfatizar a linguagem escrita e oral, resistindo à incorporação de novas linguagens, mais plurais, presentes na sociedade e com as quais os/as jovens têm muita familiaridade (as linguagem fruto das tecnologias de comunicação e informação, bem como a linguagem iconográfica, só para citar dois exemplos que são muito utilizados pelos/as jovens).
Já no caso das atividades extra-classe ocorre um vínculo maior com a preparação para a cidadania e uma articulação mais significativa com o mundo dos/as jovens que fazem parte da Escola Emília. Nessas oportunidades percebe-se um ambiente de mais descontração e de maior proximidade, facilitando as interrelação dos diferentes sujeitos que participam da vida escolar. É nítida a preferência dos/as alunos/as por esses momentos, onde eles/as podem “estar mais a vontade e se expressarem segundo seus desejos, padrões e códigos”.
Podemos constatar que as essas atividades, na maioria das vezes, constituem uma experiência a parte em relação ao trabalho que se desenvolve nas salas de aula e que são poucos, portanto, os momentos em que podemos observar um diálogo mais significativo entre as rotinas das salas de aula e as atividades extra-classe. Enquanto aquelas praticamente não conseguem romper com o “congelamento” que sofreram ao longo do tempo, seja em relação à sua configuração espaço temporal, seja no modo de conceber e desenvolver o processo de ensino-aprendizagem, as práticas realizadas do lado de fora da sala de aula parecem ser mais flexíveis, diversificadas em suas dinâmicas, onde os/as alunos/as podem ter mais iniciativas e se expressarem livremente, mesmo considerando que isso pode acontecer em diferentes níveis, dependendo da natureza da atividade.
Assim sendo, o intercâmbio entre as atividades vividas na sala de aula e aquelas praticadas nos demais espaços fora de seus perímetros parece ser ainda tímido, apesar de alguns/mas professores/as procurarem realizar esforços no sentido de uma articulação, por exemplo, quando buscam enriquecer o trabalho que é feito durante as suas aulas se apropriando de discussões que são realizadas durante a Semana da Cultura ou quando da visita a uma instituição científica ou educativo-cultural.
Todavia, essa tentativa de articulação – que podemos afirmar tênue, mas também em construção –  entre a sala de aula e as atividades extra-classe pode estar tentando expressar uma possibilidade de integração entre preparar para o vestibular e formar para a cidadania e, de certa forma, expressar buscas, no sentido de fazer dialogar a cultura da escola, com a cultura escolar e estas com a cultura de referência e a vida dos/as jovens que fazem parte da Escola Emília. E mais ainda: pode se configurar como uma possibilidade (ainda que seja pequena) de fazer dialogar as culturas desses jovens e a(s) diferentes cultura(s) sociais de referência que caracterizam o mundo para além dos muros da escola, favorecendo a convivência entre seus/suas alunos/as com outros universos culturais e, quem sabe, o diálogo intercultural.
Cremos que aqui vale destacar que na Escola Emília os jovens também são plurais. Mesmo sob uma aparente homogeneidade, constatamos que há diferentes perfis de jovens, que se expressam seja no tipo de relação que estabelecem com o trabalho escolar (mais comprometidos ou menos responsáveis), seja no tipo de interesse, gostos, modos de vida, vínculos que estabelecem, só para citar alguns elementos que os/as diferenciam. O que, na verdade, torna mais complexa a idéia de fazer dialogar o mundo da escola com suas culturas de referência.
Muitos indícios apontam para o fato da Escola Emília estar comprometida com a construção de sujeitos, ativos, críticos e criativos, entretanto, ela ainda enfrenta o desafio de penetrar as culturas dos/as jovens de um modo mais efetivo e amplo, de aproximar suas expectativas e/ou seus objetivos às expectativas e objetivos deles/as, no sentido de construir “estruturas mais democráticas que favoreçam e estimulem os intercâmbios culturais mais diversificados”. (Pérez Gómez, 1994)
Existe um caminho que já está sendo trilhado, mas de fato a cultura escolar ainda se sobrepõe às culturas dos/as jovens e eles/elas estão reclamando por mais espaços ...
Podemos dizer, então, que a Escola Emília ainda está distante de ser um lugar de “cruzamentos de culturas”, mais dinâmico e plural e que de fato favoreça o diálogo entre diferentes culturas, embora existam momentos, mesmo que eventuais, onde esses entrelaçamentos culturais podem ser constatados.
Entretanto, promover a articulação entre as práticas vividas na sala de aula e as atividades extra-classe nos parece ser um caminho fértil para trabalhar as relações entre a cultura escolar, a cultura da escola e a cultura social de referência, reforçando os encontros e superando os desencontros e, desse modo, caminhar no sentido de reinventar a escola para que ela possa responder melhor os desafios da sociedade em que vivemos e colaborar com a sua transformação.
É certo que este texto, longe de apresentar conclusões, pretende ser apenas mais um ponto de partida, pois são muitas as perguntas que provavelmente ele vai suscitar, não só questões que poderão nortear outras pesquisas, como também provocar o debate em torno de novas maneiras de trabalhar a prática pedagógica, de modo que ela possa realmente fazer a articulação entre as diferentes dimensões das culturas explicitadas no âmbito desse trabalho (escolar, da escolar, social de referência, principalmente, as culturas dos/as jovens), uma vez que acreditamos que é no espaço dessas articulações que se poderá reconstruir processos de escolarização mais sintonizados com as necessidades do mundo atual, em geral, e da sociedade brasileira, em particular.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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